RESENHA | Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra de Mia Couto

by - 31 janeiro

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra de Mia Couto

A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.”
Ainda me lembro da correspondência que pousou em minhas mãos — envelope-selos-papel-e-o-delicioso-aroma-de-oceanos-fatiado-ao-meio —, e trouxe Mia Couto, um ilustre desconhecido para mim à ocasião. 
Eu comecei a trocar correspondências na juventude... adorava voltar para casa e encontrar os envelopes à minha espera. Preparava uma xícara de chá, me acomodava na poltrona e degustava os horizontes alheios — deliciosamente descritos em linhas em pares. 
A narrativa sobre mundos encontrou eco na narrativa exposta por Mia Couto, em seu livro 'um rio chamado tempo, uma casa chamada terra'... até aquele momento, nada conhecia do autor-livro, e para sabê-lo, corri à Livraria Cultura — comecei ali mesmo a devorar as linhas, devidamente acomodada em um daqueles puffs, deixados lá para esse fim...
A cada página ultrapassada, a certeza de que Mia Couto é um contador de histórias crescia em meu íntimo. 
...'um rio chamado tempo, uma casa chamada terra' nos brinda com a história de Marianinho, um jovem que regressa à terra natal e às suas raízes, para realizar o cerimonial fúnebre do patriarca da família, seu avô... e acaba por resgatar a si, através das lembranças e revelações desse acontecimento.
O tempo é o elemento masculino da história... a força que os impulsiona e molda. A maneira como as nossas ambições particulares nos afastam de si e da casa-corpo... o elemento feminino da trama, que é o lugar para onde se volta-regressa, e onde tudo se preserva. O tempo escorre pelos vãos, mas a memória está sempre disposta a te resgatar-salvar. 
Eu me senti como o personagem... e fui guiada pelos fios da trama nesse regresso à minha infância e a tudo o que aprendi por lá. A gente é como o rio... está sempre a caminho do oceano, e cada vez mais distante de casa-corpo-alma. Acabamos perdidos, mas vez ou outra surge algo — um aroma, uma cor, um som —, que faz emergir das profundezas da pele uma saudade imensa-intensa, disposta a nos salvar de nós mesmos — do que nos tornamos nessa trajetória de enganos —, mas nem sempre nos rendemos... e acabamos indo em frente, seguindo o curso-do-rio-tempo, até que seja tarde demais. 
Eu voltei para casa um sem-fim de vezes — guiada pela voz de mio nono, que era um contador de histórias, mas não do tipo que escreve, como Mia Couto. Ao ler a narrativa do livro, foi como caminhar ao seu lado, encaixando meu passo ao dele mais uma vez: 'acordo antes de ser manhã. Uma poeira  será a luz?  infiltra-se para além dos cortinados. Renasce em mim essa estranha sensação que me acontece só em Luar-do-Chão: o ar é uma pele, feita de poros por onde escoa a luz, gota por gota, como um suor solar'.
Quando menina, eu viajava para a terra do nono nas férias de verão... o ouvia contar suas histórias de menino, sustentadas em folclores regionais. Sempre me impressionava os detalhes narrados e a viagem que eu fazia, amparada por sua voz grave-de-homem-do-campo-da-terra...era tudo tão mágico-incrível-quase-inacreditável para alguém que vinha de longe, da cidade grande, onde as coisas são pautadas por símbolos e significados. 
Mio nono conhecia as magias do lugar onde tinha nascido... sabia ouvir a terra, interpretar as fases lunares, os ventos nas folhas. Tudo era um diálogo entre o homem-terra-céu-lugar. Ele conversava com os animais, com as árvores, com os espíritos... era sempre o último a tomar seu lugar na ponta da mesa e, de lá, admirava sua vida-história. Ele adorava a mesa-casa cheia aos domingos. Gostava de se ver rodeado por netos e saber de nossas vivências longe dali. Certa vez, eu o vi com os olhos cheios na véspera de nossa partida... foi um ano difícil para todos nós, o seguinte àquele. Nunca me esqueci da notícia que nos afastou para sempre de casa: 'sua avó morreu durante uma tempestade’, e como ele costumava dizer que eu tinha nascido entre trovões, me calou por semanas. 
O livro de Mia Couto não apenas me apresentou a uma África inédita em minha pele... uma cidade — Luar-do-Chão —, com pessoas e suas vidas pequenas-menores, pautadas por coisas esquecidas-abandonadas por nós e toda essa modernidade urbana tão 'necessária', como fez o favor de me devolver a mim e saber — como o personagem Marianinho —, de que matéria sou feita. 
Recomendo a leitura, mas antes de folhear essas páginas, pense bem se está disposto a regressar, seja lá para onde é que você foi nesses anos de vida. 
Boa leitura-viagem!



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4 comentários

  1. Antes de mais nada, preciso enaltecer a sua resenha. Ficou tão poética, fez com que eu me identificasse e realmente com várias coisas que estão escritas. Também gosto de enviar cartas, olhar a caixa do correio e ver que alguém se dispôs a me mandar algo. Livro também são sempre encantadores :)
    Não conhecia o livro que você resenhou, mas logo pelo título eu já fiquei interessada. Essas histórias mais profundas sempre me chamam a atenção! <3

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    1. Obrigada Lu. A Lunna é uma excelente escritora e ela tem esse "poder" mesmo rsrs.
      beijos e volte sempre

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  2. Ah, comecei a ler este post pensando que conhecia esta escrita bonita...Lunna arrasa na prosa poética!
    Eu também amei este livro e vou ali, preparar uma xícara de chá para ler os outros posts deste belo blog
    Bjs, meninas

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    1. Oi Claudia, a Lunna é ótima né? Adoro seus textos-resenhas também. Me convida para estar neste delicioso chá.
      beijos

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